Recortes de algumas notas escritas durante os últimos 5 anos, que continuam conforme a vida continua.
agora, já que uma vida é muito pouco
pra fazer tudo que eu posso
e ser tudo que eu sou
(uma morte é muito pouco)
pensando bem eu me atirei, eu
(uma morte é muito pouco)
Fui sabendo que eu não voltaria atrás
eu mergulhei de mais alto, de mais alto
de mais alto e tem sido um voo foda
Trecho de “a todo vapor” – Don L
- Preservação é autocuidado
Pra nóis que faz audiovisual sendo de quebrada, sabe quanto custa de fato um equipamento que registre nossa memória. Seja um “simples” celular, ou uma câmera dita profissional, custo e dívida, é, pros nossos, antes de tudo uma amarra dolorida. Nossa classe sabe que cuidar custa. E custa cuidar durante muito tempo. Preservar nossas memórias, é não só produzir contraprovas materiais que enfrentam as violências cotidianas registradas no esforço contínuo de colonização, mas também é um exercício prático de cuidado. Minha mãe sempre repetia pra nóis: “quem ama, cuida”, e me arrisco a dizer: quem ama muito, cuida durante os tempos. Se fazer audiovisual é uma realidade forte nas quebradas, cuidar durante os tempos tem que ser materialmente possível, se amamos o que fazemos e o que somos, temos que cuidar.
- Fogo de novo ontem na Vila Andrade
Desde que comecei a trampar com cinema, sendo fruto da possibilidade que o audiovisual digital trouxe, nunca tive nenhum salve vindo de alguém que me alertasse o quanto o excesso de registro unido à escassez de recursos era perigoso suficiente para que, de um dia pra outro, nossa vivência e obras audiovisuais se perdessem na falta de autocuidado e descaso público com o que fazemos. Não era pra mim novidade o esquecimento programado durante anos pelos governos para o fomento de projetos como os nossos, mas o que pra mim se tornou novo foi o descaso com que o poder público olha para a preservação dos nossos registros. No Brasil, existem projetos de preservação, eles pegam fogo, mas pra nóis o fogo arde da mema maneira de quando os barracos ardem. Quando pega fogo numa casa na quebrada, perdemos a estrutura. Quando pega fogo na cinemateca, nem sabemos o que é. O Brasil se estrutura no fogo selecionado, nas queimadas direcionadas. O que resta pra nóis é lutar pela instituição altamente inflamável? Existe um interesse real no que fazemos? Preservação audiovisual nesse país é mais um jogo que os playboy jogam e nóis fica de fora assistindo?
- Se tivesse perdido existiria?
Esses dias o Dé (Andre Novais Oliveira) me escreveu perguntando se eu ainda tinha o material bruto do “Rua Ataléia”, que ele tinha perdido. Quando trampamos nesse filme em 2014, a Dona Zezé (mãe do André) ainda estava neste plano, e hoje não está mais. Fui que nem loko vasculhando meus HDs externos, que são muitos, e acabei achando muita coisa que não lembrava que existia. Me senti obrigado a organizar esse material. Tinha um registro histórico da minha quebrada, me dei conta hoje que faço cinema a mais de 10 anos no mesmo lugar. Não lembrar de coisas que existem, a partir do nosso trampo audiovisual é uma sensação curiosa, porque o digital quer enganar nóis dizendo que não existe matéria, mas existe sim. Só que existe muito, e na regra do jogo do capital, esse muito se perde no mar de segundos gravado facilmente. Num projeto de cinema onde nossa subjetividade de classe importa tanto quanto nossa coletividade, existir muito não é um problema. Porém, existir muito sem organização favorece quem quer que nóis não tenha dignidade nessa vida.
Em memória de Dona Zezé, grande atriz e conforme vemos no filme “Rua Ataléia” (Dir André Novais Oliveira, 2022), cuidava da memória apesar das chamas do apagamento que tavam perto.
- Práticas de preservação
Será que existe método na forma que esquecemos as coisas? Estou aqui organizando o material para o “Filme Policial”, onde vasculho esses HDs mais uma vez, em busca de imagens que fiz no contexto de militância e ação direta esses anos todos, principalmente as que eu gravava os policiais nos gravando. Me coloquei a pensar sobre as formas que minha vó, naquela última entrevista que gravei com ela, lembrava dos fatos da vida dela. Minha vó já não possui lucidez sobre fatos, mas ela lembra ou inventa cada experiência de trabalho que teve. Percebi também que escolhia as palavras e fazia questão de dizer pra mim que tinham sido experiências boas, não queria que seu neto fosse um “vagabundo”. As experiências de trampo que tive, principalmente as piores, são muito nítidas na minha memória, consigo elaborar sobre elas, mas as boas nem tanto. Comecei a praticar repetições saudáveis no trampo de cinema, e tenho pensado em organizar todo esse material que captei desde minha primeira câmera, nesse espírito. Organizar de maneira saudável, ter método, mas sem deixar que isso te engula, me parece o melhor caminho. Fico pensando quais eram as práticas de preservação da minha avó, essa mulher indígena que traz tanto em si, tanto na sua fala, tanto nas suas escolhas de palavra. Voltando às imagens do Filme Policial, e encarando-as, fiquei curioso pra saber como esses caras guardam todo o material audiovisual que produzem. Sei que já existem trampos que através da lei de acesso a informação consegue ir atrás desse material gravado por eles, mas minha curiosidade é se eles preservam a violência do que gravam tanto quanto esse país preserva. Cresceu o número de canais de policiais no Youtube, legalidade ou ilegalidade nunca foi problema pros braços armados do Estado. O audiovisual brasileiro é um grande projeto de preservação colonial e de permanência de classe.
Em memória de Dona Pedrina, minha avó, que veio a falecer na segunda onda de Covid-19 no Brasil, por falta de leito para atendê-la em sua cidade.
- Biblioteca de cinema
A primeira vez que pisei na Cinemateca Brasileira foi em 2012, pra exibir um filme meu que havia inscrito num projeto de exibição contínua que tinha lá, achei esse corre pela internet e foi uma descoberta e tanto saber de algo com esse nome “cinemateca”, biblioteca eu conhecia, então imaginem minha surpresa, de quem já se arriscava bastante em trampar com cinema, de saber que existia algo tão dahora como uma biblioteca, só que de… cinema! Cheguei lá pra exibição, e já o primeiro estranhamento, é que era no meio dum bairro de playboy, perto de onde minha mãe trampava. Comum é que os lugares em que trabalhamos não estão nem perto de ser o lugar onde moramos. Então teve uma estranheza, porque só tinha ido até aquele bairro pra ir no serviço da minha mãe, ficar escondido atrás da recepção em que ela trabalhava, assistindo animes e filmes na tv a cabo que tinha lá. Rolou a exibição do meu filme, e depois procurei as pessoas que trampavam na cinemateca, com alguns dvds em mãos dos meus trampos que tinha feito nos anos anteriores, e perguntei como que eu fazia pra deixar disponível lá pra geral, afinal era isso que eu via nas bibliotecas, pessoas saírem e entrarem pegando livros, então na cinemateca as pessoas saem e entram pegando cinema, né? Pra minha surpresa, além de ser super mal atendido pelo que entendi ser o “superior” do local, já que a mina da recepção não soube me informar, eu não poderia fazer só isso de deixar os filmes lá disponíveis. Pouco lembro da explicação que o cara me deu, mas era algo em torno de “não fazemos esse tipo de coisa aqui.” Saí sem entender pra que servia uma cinemateca dias após descobrir que existia uma na minha cidade. Não lembro quantos dias depois dessa situação, acabei deixando os dvds na barraca do Gilsinho, que vendia os piratinhas do lado do ponto de ônibus da padaria DMR, e pedi pra ele sair distribuindo pra geral que comprasse lá.
- Por uma cinemateca da quebrada
As reuniões para a construção da escola de cinema popular do Capão Redondo estão rolando e há cada vez mais gente interessada em somar na construção política disso. Colaram alguns playboys, mas tenho percebido que a cada reunião colam menos. Como a chamada das reuniões foram públicas, isso deles vir pra cá iria acontecer, pois quem tem grana tem tempo livre pra ser militante. Normal, já vi isso acontecer várias vezes em outros corres, mas quando colam e percebem que temos autonomia e que nem sempre precisamos deles, é um vazio porque em teoria não podem tirar proveito da nossa classe, ou status do que construímos solidamente com nossas mãos e mentes. Tenho pensado bastante em preservação audiovisual e me veio a vontade de entender o que fazemos aqui no bairro também como um movimento social em prol da preservação audiovisual das nossas coisas nesse país. Se ninguém cuida do que fazemos, porque não cuidamos então? Isso foi parte do que motivou a pensar um processo autônomo de educação em cinema, e logo será natural pensar que uma Escola popular de cinema é também um centro de preservação audiovisual de quebrada. Uma cinemateca numa quebrada, já pensou? Pois é. Tamo fazendo um monte de filme, se isso não vier a existir, vamo ter mais um ciclo de apagamento do que fazemos no audiovisual.
- Cuidar daquilo que é cuidado
Não faz muito tempo que achei o material que gravei com o Pedro, um parceiro meu de infância que já não tá mais nesse plano. Logo comecei a me movimentar em fazer outro filme, motivado por forças que não consigo racionalizar sobre elas e nem vou me arriscar. Mas sinto que essas forças me levam a caminhos que pareciam desconhecidos. Porém, quando encontro gente que vejo pela primeira vez, mas parece um diálogo de anos, desconfio que não são desconhecidos. Existe uma insegurança por eu não ter uma faculdade nas costas que me permita a dizer, por exemplo, que sei o que são as coisas na área da preservação audiovisual nesse país que chamam de Brasil. Essa insegurança, ainda se apresenta quando me vejo de frente a situações que de certa forma botam à prova meu conhecimento. Na área da preservação audiovisual senti bastante isso, mas não muito diferente na área do cinema como um todo. Seria mais fácil se meu trampo fosse escrever um rap e fazer uma diss pra meio mundo? Parece que nessa arte o baguio da segurança pra nóis e nossos conhecimentos já tá pavimentado. Mas no cinema, esse tempo do hoje que vivemos, é muito latente que precisamos nos movimentar bastante e ir encontrando essas outras pessoas nossas dispostas a fortalecer a caminhada e de fato se movimentar pela quebrada.
- Preservar é ato revolucionário
Escrevo essa nota, disposto a juntá-la com outros escritos que comecei a fazer nesses anos todos de cinema feito da ponte pra cá. Algumas coisas que focam principalmente nas angústias e questionamentos em torno da preservação audiovisual, motivado pelo meu encontro com pessoas que me ensinam sobre o assunto. Foi curioso achar em muita coisa escrita a ideia de “cuidar”, e sempre que me deparo com essa palavra fico pensando o quão conservadores somos quando nos metemos a “cuidar” de algo. Lembro uma vez que uma companheira militante disse num palanque “cuidado exagerado pode virar opressão” e fiquei brisando nisso durante um tempo, do quanto dosado estava meu espírito militante, desses que é mais guerrilheiro que cineasta (parafraseando o Don L em “a todo vapor”), e que por exemplo, a ideia de preservar algo durante os tempos poderia soar como conservador ou correr algum risco nesse sentido, de ser um discurso apropriado para aqueles que oprimem. Mas se nóis pensar em quantas vidas, dores e alegrias se partiram deste plano, e que ainda existem no tempo de agora tanto quanto no ontem e no amanhã, isso por si só desafia a ideia conservadora a partir do “cuidado demais” e põe em cheque as provas materiais das violências cometidas contra os nossos, dizendo que existimos e existiremos. Ou seja, se cuidarmos da nossa memória (audiovisual, por exemplo) vamos estar não só alimentando nosso corpo para produzirmos ainda mais obras, como também colocando frente a frente a existência que tentaram pintar de nóis, desde a invenção dessas ferramentas que o audiovisual utiliza. Nossos registros e cuidado com a memória monta um cenário de algo que é óbvio pra nóis: Existimos sendo raiz forte e somos universos.
Lincoln Péricles (vulgo LKT)
Escritor, cineasta e educador popular