RELATO DE UM CINEMA PERIFÉRICO POLÍTICO

por Daniel Neves – Companhia Bueiro Aberto

A mente tá agitada, várias ideia vem na cabeça, sobre as treta pessoal, os conflito do mundão e o próximo rolê, o sol bate forte no Bar da Vânia, duas doses de conhaque e um trago no filtro vermelho dão uma acalmada, terça-feira, dois caras bebem e jogam na maquininha, Vanessa coloca um som na jukebox, começa a cantar a música de Marília Mendonça, depois põe um Tim Maia, depois um funk proibidão, a playlist se mistura ao hino evangélico tocado na igreja em frente, Vania fuma um cigarro na porta do bar e observa pensativa o culto.

Sergião aparece, cumprimenta todo mundo e me diz:

– E aí, parça, vamu fazer um filme?

Já podia começar ali, levo na minha mochila uma câmera de pequeno porte e um fio de luz, ele trouxe o gravador e o microfone, o bar é de um reboco em algumas paredes e outras de tijolo baiano, vemos um calendário, o cartaz de uma cerveja, um grande papel branco escrito em lápis, “promoção, dose de conhaque a 2 reais”, no balcão de madeira gasta, os copos e cinzeiros se misturam, ao lado das bebidas na prateleira, há uma cruz, uma mensagem, “deus seja louvado”, e outra, “não vendo fiado”, um pisca-pisca com luzes vermelhas e verdes fica acima das bebidas. Aquele lugar, que de dia e de noite passam várias humanidades, o trabalhador cansado, o noia desiludido, a prostitua com a maquiagem borrada, o alcoólatra que jura ser só mais uma dose, os jovens que fumam seu narguile, o aviãozinho dando mais um tiro no banheiro pra ficar na disposição, a Joana que vem comer a porção de torresmo. E Vania, seus 38 anos, boa de conta, com seus caderninhos dos clientes que devem, mãe solteira de três filhos, religiosa e consumidora de conhaque, quando o bar fecha, ela acende um cigarro, coloca um pagode dos anos 90, faz a contabilidade do dia e serve uma porção de salgado para seus filhos, depois fecha o bar e sai andando pela favela…

Era o trajeto que a gente ia fazer aquele dia, Sergião conhecia Seu Dito, morador do bairro há 40 anos, desde quando tudo começou, desde quando era mato. Já fazia tempo que queríamos fazer um filme com ele.

Na viela do Dito, é o Dito que fica todas as tardes com o rádio ligado tocando músicas de acordo com as diversas pessoas que passam, pra cada novo conhecido, uma nova música ele coloca. Vai de louvor evangélico a Racionais Mcs e Guns n Roses.

Pelo caminho, a câmera já está ligada, fazemos imagens, das paredes,

varais, becos, córregos, vielas, ruas, asfaltadas e de terra, a arquitetura do lugar é meio doida, apenas em um quadro dá pra ver a parede rebocada, outra com tinta, o varal, a parede úmida, a ponte, uma criança brincando, uma senhora carregando ovos e sacolas, um jovem mexendo no celular, o enquadramento dura alguns segundos e capta aquele momento único, a imagem, depois colorada no programa de edição, é bela, impactante, traz o olhar de um universo com vários universos dentro. Sergião fala, “filma de baixo pra cima que o bagulho dá outra dimensão”. Ele gosta de compor formas geométricas com os elementos ali da favela, a referência é Eisenstein. A imagem é da hora, mas me faz perguntar, “será que estamos romantizando a miséria?”, “a imagem da miséria é da hora?”, mas Eisenstein, assim como Glauber Rocha, assim como o Cinema de Quebrada, tem um compromisso com a transformação social, essa imagem da viela é ao mesmo tempo exemplo de luta, de nós que se viramos para criar a sobrevivência, para erguer nossas casas e ruas do pensamento, mas é também denúncia da precariedade, a imagem do córrego tem de ter a podridão, pois quem vive ali não é arquiteto da precariedade.

As crianças sempre olham curiosas para a câmera, um olhar distante e encantador, as mãos delas sempre se levantam, tocam nos equipamentos, parecem ansiar por produzir imagens. Sérgião reflete, “a história do cinema é a história da luta de classes, desde Lumiere a imagem do povo está na tela, mas ele não está lá, apenas carregando os equipamentos e saindo da fábrica para ver novela, já que os trabalhadores não são donos dos meios de produção de imagens”. Eu reflito, penso que nosso cinema é diferente, é o periférico com a câmera na mão, mas que tipo de imagens vamos produzir?

Entramos na rua metade terra, metade asfalto e encontramos Júlio, logo que nos viu desandou a falar:

– Oh meus parceiro, tô vindo do trampo, tô feliz pra karalho, bora tomar uma?

– Pô, mano, vamu lá gravar aquele filme do Seu Dito! – eu digo.

– Caraca muleque, cês tão arrebentando nos filme, oh mano, vi aquele documentário da galera do futebol, que foda, vestiário é daquele jeito, o bagulho é tipo guerra! Aí mano, cês devia gravar o que aconteceu ontem! Véio, cês não vão acreditar, cheguei em casa no mó desanimo, mano, cês tão ligado as tretas das contas, debatendo com minha mina pra fechar o orçamento, mó neurose, o clima tava sinistro, sei lá, mano, tipo aqueles negócio de energia ruim, a favela calma demais, dava pra ouvir os grilo e os cachorro, minha cabeça a milhão, a Luciana tava triste porque discutiu com o pai dela e o pagamento lá do trampo dela tava atrasado, muleque, nem a TV tava ligada, queria tomar todas pra esquecer, mas só recebi hoje, hoje vou beber pra comemorar, é foda, a cachaça também estraga, esses dias fiquei virado dois dias, aí já viu, uma coisa leva a outra… Mas aí, manos, cês não vão acreditar, meu muleque, mano, meu muleque tava no chão com os brinquedos, olhou a estante, as fotos do casório, a mamadeira com leite pela metade, a luz entrando na janela, nosso olhar apreeensivo sem dar muito atenção pra ele, daí o muleque… o muleque levantou e andou pela primeira vez, foi a primeira vez que vi meu filho de pé.

Trocamos mais algumas ideias, parabenizamos Júlio, marcamos de nos encontrar depois da gravação e caminhamos. Aquele brilho no olhar dele me fez viajar em várias ideias. Quando comecei a fazer cinema, queria filmar a miséria do meu povo, mas porra, será que a gente tem que falar só de desgraça ? De família destruída? Do que não deu certo? O primeiro andar de uma criança daria um filme foda, assim como o encanto do pai contando a situação. Tem hora que a vida me faz esquecer dessa politização policiada, de que tudo tem uma explicação lógica na luta de classes, de que a quebrada é uma só imersa na tristeza. Quem sou eu para dizer o que um cineasta de quebrada vai filmar? Quem é esse cineasta para me propor uma cartilha? Não me sinto acima de ninguém, talvez na classe média ou na própria quebrada tenham militantes esclarecidos, que podem ensinar a desigualdade, porra, eu só consigo aprender, não sou moralmente certo, no padrão de ser humano bom consciente, ninguém que eu vejo é, tá todo mundo imerso em vários universos, tá todo mundo sonhando, fudido, cambaleando e parece que tem algo nessa nossa vida simples que vale a pena lutar, vivenciar. Se somos esses personagens errantes, por que não somos nós que se levantam pra questionar o sistema na linha de frente? Tô cansado de cagar regra, de pensar um cinema cheio de verdades prontas. Aliás, dizem por aí, tudo é política, falar de amor na quebrada, falar de existencialismo, de religião, de sentimento, não é ser político?

O pensamento muda quando pego a câmera e direciono pra um parceiro que é porteiro, vindo do trampo, meu cigarro acabou, fumei os três soltos que peguei no Bar da Vânia, só recebo amanhã, 6 hrs da manhã também tô na portaria, se eu não beber demais. O cinema também dá um desânimo porque falta grana e tempo para tocar os projetos, comprar equipamentos, distribuir, estudar, tudo isso trampando 12 horas por dia, às vezes nem me vejo como cineasta, sou como aquela rapaziada artista informal do gueto, o caminhoneiro que toca uma viola, a faxineira que pinta uns quadro, a tiazinha aposentada que faz poesia, essas estórias estão nos nossos filmes, estamos com uma galera tentando organizar um movimento pra ver se tem umas oficina no bairro pra gente ensinar cinema pra pros muleque, investimento em cultura tá osso.

Ah, mas a gente nunca foi de simplesmente aceitar a realidade, a gente busca sim reinventar, questionar, a gente se envolve em filme ativista, principalmente quando a causa afeta nossa sobrevivência, a quebrada vai pra luta não é de hoje, marchamos juntos dos movimentos sociais das antiga e do presente. Mas dentro da quebrada tem muitas realidades, fora dela também, a gente também faz filme pelo mundo, a gente tá no front também. É pô, a gente é de esquerda, embora não se sinta tão parte dela, tem algum vazio que me devora enquanto o patrão nos devora dia-dia. O cinema pode ser um instrumento de luta política, mas é muito cômodo eu fazer um filme bonito, bem feito, conceitual, ser premiado em festival pela crítica de algum especialista, um filme sobre a fome, mas a fome continua lá, pronta pra ganhar um monte de prêmio, e desde muito que ouço, tem que organizar, tem que mobilizar, tem que discutir, fazer greve, tem que pressionar, tem que transformar a sociedade, o que fazemos quando a câmera não está na mão? O que a gente vai fazer? E fora da tela, porra? E se esse meu filme comunitário, que gravei na viela de casa não chega nas pessoas que moram nessa viela, merda, de que adianta? Mas pra nós sempre chega, o filme de futebol que o Júlio falou foi rodado na quadra da quebrada, tinha pipoca, cachorro-quente, criança, cachaça, a rapaziada se ajeitou e curtiu o rolê, teve debate, tinha música que lembrava aqueles filmes americanos, é, eu odeio e amo filme americano, a lembrança da sessão da tarde na casa da vó sempre reaparece como saudade.

Andando naqueles becos, foi como se eu tivesse viajado pelo mundo inteiro, nem percebi, Sergião falava dos planos fechados para captar a vivência do Dito, entramos na viela do Dito, a mente foi ficando mais de boas, talvez a gente só quisesse fazer um filme mesmo, nada demais, pra suportar a vida, pra falar o que quisesse independente de discurso e reflexão filosófica, acho que sou um pouco de tudo, só não quero mais carregar a carga de nenhum  rótulo, não tem jeito, a gente tá no front, tamu questionando o mundo e a nós mesmos, tamu batendo de frente com o sistema e com nós mesmos, diariamente, isso é cinema político né? Dito estava sentado na sua cadeirinha de sempre, logo que nos viu:

– Opa, chegaram meus menino, tenho que colocar aquela clássica!

Ele sabia os sons que a gente curtia, Sergião deu um abraço no velho, ligou a câmera, Dito colocou um vinil de Raul Seixas na vitrola, era a música “Carpinteiro do Universo”, o filme começou há muito tempo…

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